A Abordagem Lacaniana do Autismo: Diferença entre Autismo e Psicose? A psicanálise lacaniana propõe um olhar singular sobre o autismo, diferenciando-o da psicose a partir das operações de alienação e separação, fundamentais na constituição do sujeito. De acordo com Colette Soler, o psicótico não está fora da linguagem, mas sim fora do discurso, uma distinção essencial para a compreensão da psicose. No caso do autismo, a questão se coloca de maneira diferente: ele pode ser entendido como um “aquém da alienação”, uma recusa em se inserir nessa operação constitutiva do sujeito.
O Fracasso da Instalação da Imagem do Corpo no Autismo
Pesquisas e observações clínicas indicam que bebês com sinais precoces de autismo podem apresentar uma ausência de troca de olhares com a mãe, não sorrirem ou vocalizarem para ela, nem a chamarem em momentos de aflição. Esse padrão relacional aponta para uma dificuldade fundamental na constituição da relação especular com o Outro.
Segundo a teoria lacaniana, a fase do espelho é um momento crucial para a formação do eu e da imagem do corpo. Se essa fase não ocorre adequadamente, o sujeito não se reconhece no espelho e não constrói uma imagem integrada de si mesmo, resultando em uma estrutura que difere da psicose, pois não se instala sequer a alienação.
O Olhar do Outro e a Falta de Reconhecimento Primordial
Lacan postula que o reconhecimento do bebê pelo Outro é essencial para sua constituição subjetiva. No autismo, há uma falha nesse reconhecimento primordial, o que pode levar a uma evitação do olhar da mãe e a um bloqueio na constituição da imagem do corpo. Esse fenômeno também pode ser compreendido através do esquema óptico proposto por Lacan, onde a relação especular e a constituição do narcisismo primordial estão intrinsecamente ligadas à maneira como a criança é vista e significada pelo Outro.
A ausência dessa dimensão simbólica e imaginária pode deixar a criança sem uma imagem corporal integrada, tornando problemática sua experiência de unidade corpórea. Como consequência, ocorre uma fixidez libidinal no próprio corpo, levando a fenômenos como autoestimulação e automutilação, comuns no autismo.
O Papel do Outro na Falicização da Criança
No Seminário X, “A Angústia”, Lacan desenvolve uma versão modificada do esquema óptico, onde o Outro primordial, ao reconhecer a criança, oferece-lhe sua própria falta (“A barrado”). No autismo, esse processo não ocorre, impedindo a falicização da criança e deixando-a fora da lógica do desejo e da inscrição no campo do Outro. Isso marca uma diferença crucial entre o autismo e a psicose, pois, enquanto o psicótico se encontra no campo da alienação e fora do discurso, o autista permanece num estado anterior a essa constituição, recusando a entrada no jogo simbólico.
Considerações Finais
A abordagem lacaniana do autismo enfatiza a falha na constituição da relação especular e a ausência do reconhecimento primordial pelo Outro. Isso diferencia o autismo da psicose, que, embora também envolva dificuldades na estruturação subjetiva, ainda se insere no campo da linguagem e da alienação. Ao compreender essas distinções, a psicanálise pode oferecer perspectivas valiosas para a clínica do autismo, propondo intervenções que visem facilitar a constituição da imagem do corpo e a inscrição da criança no campo do Outro.
Referências Bibliográficas
- Lacan, J. (1964). Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.
- Lacan, J. (1963). O seminário, livro X: A angústia. Rio de Janeiro: Zahar.
- Soler, C. (2003). Lacan: O inconsciente reinventado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
- Laznik-Penot, M. C. (1997). La psychanalyse de l’enfant. Paris: PUF.
- Freud, S. (1914). Sobre o narcisismo: Uma introdução. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. XIV. Imago Editora.
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por Leonid R. Bózio
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